A tragédia do Ninho do Urubu continua sendo uma ferida aberta na história do futebol brasileiro e, mais profundamente, um retrato doloroso da forma como a justiça é tratada em nosso país. Em 8 de fevereiro de 2019, o Centro de Treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, transformou-se em cenário de horror. O fogo que consumiu os contêineres adaptados como dormitórios levou a vida de dez jovens entre 14 e 16 anos, meninos com sonhos de vestir a camisa do clube e mudar a vida de suas famílias.
Por Paulinho Cunha - Dreams FM
Arthur Vinícius, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo Santos, Pablo Henrique da Silva, Rykelmo de Souza Vianna, Samuel Thomas Rosa, Vitor Isaías e Athila Paixão jamais serão esquecidos.
O incêndio começou por volta das 5h17 da manhã, em uma estrutura metálica improvisada, sem alvará, sem autorização dos bombeiros e sem condições mínimas de segurança. Um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado foi o estopim de uma tragédia anunciada. O local onde esses garotos dormiam era um verdadeiro barril de pólvora, fruto de uma combinação de negligência, omissão e descaso com a vida humana. Vidas foram ceifadas, e mais uma vez os responsáveis se safam, protegidos por um sistema que deveria nos proteger e acaba punindo as vítimas e suas famílias. Uma inversão de valores sem precedentes, onde a morte dos jovens se transforma em estatística enquanto o privilégio e o poder se sobrepõem à justiça.
Passados mais de seis anos, o que se vê é a impunidade triunfando sobre a dor das famílias. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu sete réus que respondiam criminalmente pela tragédia. A decisão, assinada pelo juiz Tiago Fernandes de Barros, declarou a ação improcedente sob o argumento de que não foi possível individualizar a conduta culposa de cada acusado ou estabelecer uma relação direta entre as ações (ou omissões) e o resultado das mortes. Entre os absolvidos estão ex-dirigentes do Flamengo e engenheiros das empresas responsáveis pelos contêineres e pela manutenção dos equipamentos.
A justificativa da sentença é a mesma que o Brasil já se acostumou a ouvir quando o poder econômico e político estão em jogo: “falta de provas”, “complexidade do caso”, “dificuldade de atribuir responsabilidades”. Argumentos frios e formais que ignoram o óbvio, dez vidas foram ceifadas por um sistema negligente e ganancioso que tratou seres humanos como peças descartáveis de um projeto esportivo milionário. O Ministério Público promete recorrer, mas todos sabem que o tempo, aliado à lentidão e às brechas do sistema, é o maior inimigo da justiça.
O Flamengo, por sua vez, tenta se proteger atrás de acordos de indenização, cifras que jamais poderão apagar o sofrimento das famílias, nem ressuscitar os sonhos destruídos. O clube reformou suas instalações, modernizou o centro de treinamento e tenta seguir sua rotina de títulos e glórias, enquanto as mães e os pais daqueles meninos ainda lutam para entender por que ninguém foi responsabilizado criminalmente.
Mas a crítica não deve recair apenas sobre o clube. O verdadeiro escândalo está no sistema judiciário brasileiro, que há muito tempo perdeu o rumo entre o que é justiça e o que é conveniência. O país tem assistido a um festival de decisões controversas, de sentenças compradas, de manipulação de provas e de processos usados como instrumentos de perseguição política ou proteção de interesses. Juízes que viraram celebridades, tribunais que se transformaram em palanques, e uma confiança pública que se esfarela a cada decisão incoerente e seletiva. Onde estão os sociólogos? Onde estão aqueles que cantavam a musiquinha para “salvar a Amazônia”? A ideologia política, quando misturada a interesses escusos, é um lixo. Defendem sempre quem paga mais. Nunca foi por alguma causa nobre, sempre foi pelo dinheiro.
Quando se trata de grandes corporações, políticos influentes ou instituições poderosas, a justiça brasileira se move devagar, hesita, tropeça e arquiva. Mas quando o réu é opositor político, pobre, periférico ou sem influência, a mesma justiça é rápida, implacável e punitiva. A tragédia do Ninho do Urubu escancara essa contradição: dez garotos de origem humilde, mortos em condições subumanas, e nenhum culpado. É a evidência de que a lei no Brasil muitas vezes protege o que deveria punir e pune quem deveria proteger.
O juiz afirmou que o caso é “sistêmico e complexo demais” para definir responsáveis. Pois é justamente essa complexidade que revela o tamanho da negligência coletiva. O alojamento não tinha alvará. Os bombeiros não autorizaram o uso. Os contêineres não eram adequados. E mesmo assim, jovens dormiam ali todas as noites. Isso não é acaso, é crime. É resultado de um sistema que prefere a omissão à responsabilidade, que enxerga a dor das famílias como estatística e a justiça como um jogo de conveniências.
O Brasil já viu muitos Ninhos do Urubu: tragédias nas estradas, desabamentos, incêndios, rompimentos de barragens, sempre com os mesmos protagonistas:estado ausente, negligência empresarial, corrupção pública e uma justiça complacente. A cada nova sentença, o país se afasta mais da ideia de que todos são iguais perante a lei.
A absolvição dos sete réus não é apenas uma derrota das famílias das vítimas, é uma derrota moral do Brasil. Um país que se acostumou a enterrar seus jovens e absolver seus culpados. Um país em que a verdade é relativa, o dinheiro compra silêncio, e a justiça se ajoelha diante do poder. Enquanto a toga continuar servindo de escudo para a covardia e o privilégio, e enquanto a justiça for tratada como mercadoria nas mãos de poucos, tragédias como a do Ninho do Urubu continuarão a acontecer e a impunidade seguirá queimando, lenta e silenciosa, como o fogo que levou dez meninos e consumiu mais um pouco da esperança de que um dia o Brasil será realmente justo.
Que Deus possa trazer conforto e paz neste momento tão difícil às famílias das vítimas da tragédia do Ninho do Urubu.
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