Por Redação | Dreams FM
📆 05 de agosto de 2025
A história de Samille Ornelas, uma baiana de 31 anos, escancarou nesta semana os dilemas profundos e dolorosos que ainda cercam a política de cotas no Brasil. Aprovada no curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2024, através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), Samille teve sua matrícula cancelada após uma comissão de heteroidentificação da universidade afirmar que ela não apresentava características fenotípicas compatíveis com a autodeclaração de parda.
“A única coisa que eu tinha certeza na minha vida era da minha cor, da minha identidade”, desabafou Samille em entrevista ao G1.
Foto: Samille - Arquivo Pessoal
Samille se inscreveu pelo sistema de cotas raciais e sociais, voltado a estudantes pretos e pardos de baixa renda, cumprindo todos os requisitos previstos no edital: gravou o vídeo exigido pela UFF, falou sua autodeclaração e filmou seu rosto de perfil. Mesmo assim, foi considerada “inapta” para a vaga por duas comissões diferentes.
Diante da negativa, recorreu judicialmente e, após um ano de espera, conseguiu uma liminar que lhe garantiu o direito de iniciar o curso no início de 2025. Deixou o emprego em Belo Horizonte, mudou-se para o Rio de Janeiro e enfrentou o luto pela morte do pai para viver o sonho de estudar medicina.
Mas o pesadelo voltou quando, faltando apenas duas provas para concluir o primeiro período, a Justiça cassou a liminar e sua matrícula foi cancelada sem aviso prévio.
“Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça.”
Foto Reprodução: Arquivo Pessoal
⚖️ Quem decide quem é pardo?
Desde que o sistema de cotas foi adotado nas universidades públicas, surgiram comitês de heteroidentificação, bancas formadas para evitar fraudes, principalmente de candidatos brancos se passando por negros ou pardos.
Essas bancas avaliam exclusivamente os traços fenotípicos: como cor da pele, nariz, boca, cabelo, desconsiderando totalmente ancestralidade, vivência de racismo ou contexto social. No caso da UFF, o processo é feito à distância, com base apenas em um vídeo de cerca de 17 segundos.
Apesar do Supremo Tribunal Federal já ter validado os comitês, especialistas e ativistas alertam que a subjetividade e a superficialidade desses julgamentos podem gerar injustiças, como a vivida por Samille.
🧬 Laudo antropológico ignorado
Para tentar reverter a decisão, Samille apresentou um laudo elaborado por um antropólogo, que analisou seus traços físicos e concluiu que ela possui características afrodescendentes. A Justiça, no entanto, não considerou o laudo suficiente para reverter a decisão da banca.
“Analisaram meu crânio, meu nariz, meus lábios. Me senti desumanizada. Mas o laudo, mesmo com base científica, foi ignorado.”
💔 Identidade colocada em dúvida
O impacto na saúde mental de Samille tem sido devastador. A jovem relata medo de sair nas ruas, vergonha da própria aparência e crise de identidade.
“Sempre me reconheci como parda. Já vivi racismo. Mas agora parece que minha identidade foi arrancada de mim. Me sinto uma impostora, como se tivesse cometido um crime.”
Apesar do sofrimento, ela não desistiu. Estuda novamente para o Enem e aguarda a decisão da Justiça nas instâncias superiores.
🗣️ Reflexão urgente
O caso de Samille expõe uma ferida aberta: quem tem o direito de dizer quem é pardo ou negro? Até onde vai a eficácia do combate às fraudes, e onde começa a violência simbólica contra identidades legítimas?
A luta contra oportunistas é justa, necessária e urgente. Mas quando o critério é aplicado com rigidez cega e desumanizada, pessoas como Samille que viveram na pele o peso do racismo são deixadas à margem.
A UFF, por sua vez, afirma que cumpre rigorosamente a legislação, que suas bancas são capacitadas e que o processo é conduzido com isonomia. A universidade reforça seu compromisso com a política de cotas e a diversidade.
Mas o caso de Samille deixa uma pergunta incômoda no ar:
Quantos sonhos mais serão destruídos por comissões que avaliam uma identidade com base em 17 segundos de vídeo?
A definição de quem pode ser considerado pardo no Brasil é complexa e envolve tanto critérios sociais quanto físicos (fenotípicos). No caso dos comitês de heteroidentificação, como o que avaliou a aluna Samille Ornelas, o critério usado é exclusivamente fenotípico, ou seja, baseado na aparência — não na ancestralidade nem na autodeclaração isolada.
🔎 Quais traços fenotípicos são considerados "pardos"?
Pessoas pardas, segundo os critérios das bancas, são aquelas que apresentam características físicas que indicam miscigenação com ascendência negra ou indígena. Alguns dos traços frequentemente observados são:
🧑🏾🦱 Cor da pele
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Tom de pele intermediário, variando do claro ao castanho escuro.
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Não é necessário ter pele escura como a de pessoas negras, mas também não pode ser de pele clara ao ponto de ser confundida com brancos.
👃 Formato do nariz
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Nariz largo ou achatado é considerado um traço de ancestralidade africana.
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Nariz afilado tende a ser associado ao fenótipo branco europeu.
👄 Formato dos lábios
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Lábios mais grossos ou volumosos são vistos como traços afrodescendentes.
💇🏾♀️ Textura do cabelo
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Cabelos crespos, cacheados ou ondulados. A presença de cabelo liso natural pode pesar contra a identificação como pardo ou negro.
👁️ Outros traços
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Estrutura óssea facial, como maçãs do rosto ou formato do queixo.
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Sobrancelhas, olhos e mandíbula também podem ser considerados, embora menos centrais.
🟡 Importante: quem decide?
Não existe uma tabela oficial ou científica com esses traços — tudo depende da interpretação da banca (composta por 3 a 5 membros capacitados). A subjetividade do julgamento é um dos pontos mais criticados por especialistas e movimentos sociais, pois pode levar a injustiças e exclusões, como no caso da Samille.
📌 Observações importantes
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A classificação “parda” é do IBGE e representa a mistura entre raças, geralmente entre branco, negro e indígena.
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Uma pessoa pode sofrer racismo na vida real, mas ainda assim ser considerada "não parda" por uma banca que analisa apenas sua aparência.
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Já houve decisões judiciais que reconhecem o racismo estrutural e a vivência social como elementos importantes, mas o padrão atual ainda foca no fenótipo.
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