Alguns dias atrás, vazou o suposto novo uniforme da seleção brasileira. Não era o azul mais escuro que me assustava. Não era o tom, o corte, a proposta estética. O susto veio do detalhe: onde deveria estar o logo da Nike, estava o Jumpman, a marca de Michael Jordan. Jordan. O Pelé das quadras, das quadras. Um gigante do basquete, um revolucionário, um ícone global. Mas o Pelé é o Pelé. É do nosso gramado, do nosso chão, da nossa história, da nossa alma futebolística. E a CBF jamais poderia aceitar, por automatismo comercial, que o símbolo de outro esporte ocupasse o lugar de honra na camisa da seleção brasileira.
Futebol não é vitrine de marketing. Seleção não é catálogo. Camisa não é souvenir. Camisa é memória e memória exige respeito.
E foi aí que uma indignação profunda se instalou. Como é que a CBF, guardiã simbólica da nossa camisa, permite que o símbolo de outro esporte ocupe o espaço sagrado da camisa brasileira? Como aceitar que o marketing global passe com o trator por cima da história de um país que respira futebol desde o berço?
E por que isso dói tanto?
Porque o Brasil parece ter desaprendido a respeitar seus gigantes.
E quando falo de gigantes, não falo de qualquer um.
Falo de Pelé, o único.
O homem que não apenas redefiniu o futebol, mas redefiniu o que é ser brasileiro no mundo.
A Nike tem seus interesses. A CBF, seus acordos. Mas o Brasil tem algo maior: tem Pelé. O único atleta capaz de transcender o próprio esporte a ponto de parar uma guerra. Em 1969, quando o Santos enfrentaria o Benfica de Lagos, na Nigéria, as forças em conflito decretaram uma trégua de 48 horas apenas para ver Pelé jogar. Nenhum outro atleta fez isso. Nenhum. Jordan é uma lenda, claro. Mas Pelé é outra categoria: a dos mitos vivos e agora eternos, que ultrapassam fronteiras, governos, religiões e idiomas.
Me diga:
Que atleta fez isso?
Jordan? Não.
Messi? Não.
Maradona? Não.
Ninguém. Só Pelé.
E aí, num país que deveria erguer estátuas de ouro para esse homem, a gente vê o símbolo de outra lenda mundial ocupando o lugar que poderia e deveria ser nosso. É quase uma confissão involuntária de amnésia nacional.
Pelé tem três Copas do Mundo.
Tem 1.281 gols.
Tem o milésimo marcado em 19 de novembro de 1969, data que virou referência nacional.
Foi campeão adolescente, rei aos 17, mito aos 30, imortal até depois da morte.
Inventou dribles. Inventou movimentos. Inventou possibilidades.
Foi o rosto do Brasil para o mundo quando nada no Brasil parecia funcionar.
Foi a luz em anos escuros.
Foi o orgulho que muita gente carregava no peito sem ter mais nada para se orgulhar.
E nós, em 2026, vamos deixar o Jumpman ocupar o peito da nossa seleção?
Com todo o respeito a Jordan, e não é ironia, é respeito mesmo e a pergunta é inevitável: que atleta fez o que Pelé fez?
E é aqui que a crônica vira crítica. E que a crítica vira proposta.
A NR Sports, empresa dos pais de Neymar, acaba de adquirir os direitos da marca “Pelé”. Está nas mãos brasileiras. É oportunidade brilhante, rara, histórica.
Por que não costurar uma parceria? Imagine:
Ao invés da silhueta de Jordan, a silhueta de Pelé dando seu famoso soco no ar.
O gesto que virou símbolo de vitória, de luta, de eternidade.
Não só celebraria o maior de todos, como devolveria à camisa o que ela andou perdendo: identidade. Raiz. Narrativa. Afeto. História.
O gesto que marcou gerações, que representou vitórias, superações, a alma brasileira em forma de movimento.
Não é só estética.
Não é só marketing.
É identidade.
É legado.
É memória.
É respeito.
Uma marca não faz uma seleção.
Mas um ídolo faz um país lembrar quem é.
Até a Copa de 2026, ainda dá tempo de corrigir o rumo. Ainda dá tempo de tirar o Brasil da prateleira dos produtos genéricos e colocá-lo de volta na prateleira dos símbolos. Ainda dá tempo de largar o modismo importado e abraçar o mito exportado por nós.
Porque uma seleção que esquece seus heróis é uma seleção vazia.
E uma camisa que não honra sua história vira só pano colorido.
A camisa da seleção precisa voltar a ser casa.
E casa tem cheiro, tem voz, tem história e tem donos.
O Brasil tem muitos ídolos, mas só um Pelé.
Só um capaz de parar guerras.
Só um capaz de unir gerações.
Só um capaz de justificar, sozinho, o símbolo no peito.
O Brasil não precisa de um salto estilizado na camisa.
O Brasil precisa do seu soco no ar.
E se a CBF não percebe isso, então que o torcedor lembre.
Que o país lembre.
Que o mundo lembre.
Porque a gente pode até discutir quem é maior dentro de campo.
Mas só um homem fez um planeta parar para vê-lo jogar e uma guerra cessar para aplaudi-lo.
E esse homem não está nas quadras.
Esse homem é nosso.
E o símbolo dele está faltando no peito que deveria ser o mais brasileiro do mundo.
E que até 2026 o Brasil tenha a coragem de colocar no peito aquilo que sempre carregou na alma: o soco no ar do maior de todos os tempos.


